A estante

Foram demasiados anos a não poder tocar naquela estante.

Cada lombada. Cada folha desalinhada.

Não havia ordem para abrir a porta envidraçada que fechava os segredos daquela casa.

Os sinos da capela da quinta tocaram pacientemente. A aldeia soube. O Senhor morreu.

As carpideiras e os véus negros, enraizados no povo, desfilaram debaixo das arcadas graníticas.

Sara subiu as escadas, sorrateiramente. Entrou na sala dos livros.

A sua inquietude de menina voltou. Rapidamente rodopiou nas memórias, nas tentativas de perceber. O avô nunca deixou. O pai nunca permitiu.

Sara sempre fora afastada violentamente das reuniões familiares. Sempre que tentava entrar, a porta era fechada. Tinha dias que não dormia. Passava as noites em claro. Sentia que ela era o assunto.

O avô, o pai e o tio.

Sentia o peito apertado.

Gritava por dentro a raiva que lhe assombrava os dias. Não ousaria sequer fazê-lo ao pai ou ao avô!

Agora, que o corpo ainda era vigiado pelas velas enormes na capela, seria o momento.

Entrou na sala e fechou a porta. Ficou minutos agarrada à porta, respirando fundo. Procurando a coragem. Teve medo, suou friamente, mas avançou.

A chave da estante não estava escondida como sempre estivera. Estava ali, na mesa redonda com o pano verde do jogo de cartas encharutado.

Agarrou-a e rapidamente a colocou no seu lugar.

Rodou-a. Clique.

A dobradiça rangeu e a porta de vidro desenhado abriu.

Todos os livros eram iguais. Não tinham letras na lombada. Apenas números. Súbitamente, não foi uma visão de artista, mas no meio de tantos, um só, branco. O Livro de Cesário Verde. Retirou-o. No meio dos sentimentos de um qualquer ocidental, uma folha. Escrita à mão.

Sara era a herdeira de quem lhe matara a família.

O morto era o Senhor.

Outro foi preso.


(Sétimo texto da participação no Campeonato Nacional de Escrita, organizado por Pedro Chagas Freitas.)

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