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Mostrando postagens de setembro, 2017

Fava

Sei que para muita gente, este é um alimento que causa alguma repulsa. Não para mim. Adoro umas belas "Favas suadas" feitas pela minha mãe. Adoro uma aromática "Sopa de favas", colhidas pela manhã e descascadas pela noite. Tenho a consciência de que, para muitos, esta leguminosa se torna desagradável. Há quem não aprecie a sua consistência, o seu sabor ou até mesmo o seu aroma. Julgo que, por certamente assim ser, por haver uma grande maioria de pessoas a não gostar, esta tenha sido usada para a célebre frase:"Vai à fava!". É que poucos seriam os que iriam com agrado. Eu tenho a sorte de o poder ser. Ser mandada à Fava. Vou com gosto, porque gosto! Agrada-me o alimento. A expressão, nem por isso. Mas vou. Aceito. Só gostaria que, quem o quer fazer, o faça diretamente. Que as subtilezas, desprezo e afins, fiquem nos bolsos cheios de moedas que se atiram num jogo de cara ou coroa. Ser capaz de acutilar os outros é uma visão desesperante. Principalm

Vermelho

Imagem
O soalho de madeira clara ecoou. O som límpido daquele movimento encenado pelo gingar de ancas ressoou nos ouvidos menos atentos. Cada passo, segurança. Cada passo, coragem. Cada passo, altivez. Cada passo, certeza. Cada passo, confiança. Ele olhou de soslaio. Não elevou o olhar. O carmim daqueles passos prendeu-o. Não foram precisos minutos. Cada segundo pasmado na sua face traduzia a surpresa do momento. Nunca ela havia ousado tanto! Os sapatos vermelhos. O sonho de os ter era antigo. A força de os usar era nova! A cada passo breve, um elogio a si mesma. As tábuas ressoaram a firmeza. O coração, de inocente sentir, tremeu. Ele seguiu cada som. Cada movimento. Cada suspiro. A respiração dela era acelerada. Notava-se no peito que florescia no decote pouco pronunciado. Era discretamente perturbador. O suficiente para antever o que ali se podia possuir. O folho branco da camisa de seda dançava ao ritmo que as ancas se moviam pelos passos consistentes. Na cintura, ond

Lavar dos cestos

A tina. De madeira. Arcos de ferro. Limpar uns dias antes. Lavar. Afastar o pó. O tio, tinha o carro dos bois pronto. Carregar a tina não era fácil. Os bois puxavam. As tábuas faziam de rampa. O esforço dos braços humanos compensava. "Amanhã é para ir cedo! Levem os baldes e as tesouras. Leva a pequena que é mais maneirinha para as miúdas!" A voz sábia daquele envelhecido homem, apoiado na sua bengala de anos seguidos de ais. Na sua altura não se contestava a careca que se coçava num levantar de boina com dois dedos. A vinha já não era a sua. Havia vendido ao arroz. Resistiu enquanto a sorte não a levou. Era carga a mais. Muito tempo de alma às costas. Agora comprava as uvas, pelo prazer de fazer o seu vinho. Levezinho, quase sem grau. Mas seu! À sua maneira. Depois do vinho, a jeropiga e a aguardente. Era do seu suor. Era sua aquela colheita. No prazer de levar a família naquele manejar de tesouras: tac, tac, tac. Cacho por cacho. Bago por bago. Quando os p

Bloco

As dúvidas que te assaltam não desaparecem com o sopro do vento. Revês cada momento da tua vida ali. Estás deitada. Ventre ao ar. Páginas lisas de um livro que se escreve pelo bisturi de alguém. A luz estéril que te ilumina naquela sala arrefece-te a alma. Fechas os olhos. Não sentes que estás, mas vais ficar. Retiram-te do meio do pensamento o fugaz instante de pensar em algo bom. Quererás acordar feliz. Não sabes como será. Perguntas a ti mesma se voltas. Revira os olhos verdemente lentos. Retens naquele revirar preguiçosamente forçado as imagens que não queres apagar da tua memória. Queres voltar e sentir. A praia paradisíaca que imaginas na sombra de uma palmeira raquiticamente tombada. O gelado que se derrete entusiasticamente por entre os teus seios que este ano estão bem marcados pelo bronze de verão. O chapéu de palha que te acolhe na sua sombra e te admira enquanto despes o vestido leve que se eleva com o vento. Seria ali, naquele lugar de fácil acesso imaginário q

Maria

Hoje. Vi-te. Ali, num gemer de maca de hospital em sala de espera. O grunhir silenciado pela vergonha de quem quer pedir ajuda e não se conforma. Mais tarde. Na sala de espera de um centro de saúde. Vi-te, novamente. Num branco cabelo de altivos 90 anos. Estavas lá. A arritmia de que se queixou. O lamento de ter perdido o norte e não saber onde estava a escola onde aprendeu a ler as palavras que lhe saíam: "Por favor, mantenha a porta fechada." Continuaste ao meu lado. Não foges no apoio da alma. Proteges o corpo deste sentir constante da tua falta. Talvez me sinta a mim. Talvez me queira eu, sentir assim, longe de ti. Naqueles dois seres em que hoje te vi, resignei-me na falta que te sinto. Ele pedia que lhe não movessem a perna, tal como tu nos pedias. Ela queixou-se do peito, da dor, da ansiedade e do exame que havia feito pela manhã. Ela buscou em mim uma palavra. Procurou o conforto de ter com quem falar, de ter quem a ouvisse no seu lamento. A sua esco

Festa

Gostar de festas sempre me esteve cravado em cada poro da minha pele. Umas, as da aldeia. Aquelas, que a coluna pendurada por fios elétricos no poste da luz da minha rua me despertava pela manhã, com a música mais autêntica que o popular pode definir. Outras, as da família. Aquelas, onde se reuniam pelo porco que se criou todo um ano com o propósito de todos reunir, à mesa. E que reunião era aquela, onde, por entre gritos de euforia se corria pelos quintais. Onde, entre os canoilos do milho se criavam as cabanas imaginárias inspiradas na personagem descalça do rio Mississipi. Outras ainda, as das princesas. Aquelas, em que a rapariga sonhou toda uma vida. Aquelas, onde o vestido ganhou fama e quem o veste o sonho! O casamento! Sempre gostei. Sempre achei que os convites que chegavam a casa dos meus pais eram o momento mais feliz. Chegava o dia. Roupa nova. Sapato brilhante. Penteado escovado na cadeira da cabeleireira. O carro limpo com brilhos fugazes de verniz. O vestido