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Mostrando postagens de julho, 2020

Gata branca e preta

A voz é som de fundo. Cada frase. Há um sussurro que se afasta. Ele fala. Desabafa as razões que lhe fizeram a mágoa sobressair. Nunca viveu nada assim. Nunca sentiu a dor a dilacerar as artérias como agora. Eu ouço. Mas não escuto. Eu olho. Mas não vejo. A colher lenta gira na caneca de chá que evapora. O perfume da hortelã inebria-me. E eu fujo. Os olhos verdes terra cansados seguem a luz tardia. Mais um dia que finda. Pelo vidro orvalhado de poeira, cismo nas nuvens de tom alaranjado que se erguem sobre os telhados. A melhor hora para fotografar. Volto aos telhados. A gata branca e preta desenha um perfil perfeito de felina caçadora. Na beira do telhado, segue com destreza ocular, um pássaro que entra e sai da laranjeira em pequenos voos de gazela. Voa a gata e apanha o pássaro. Caiem os dois, dançando, no chão de terra viril, enrolados nas ervas frescas e floridas de lilás e laranjas românticos. Eu sinto. O olhar que me foge para o p

Miúda

Ali. Sentada na desilusão. Pernas estendidas no chão de mármore da varanda. Corpo recostado na amarela parede salgada. A mão direita que segurava o copo de vinho meio cheio, apoiava-se na almofada coçada dos gatos que por ali abundavam. O vento, fétido de maresia, soprava-lhe os cabelos loiros das madeixas californianas da moda. A maquilhagem deslizava pelo rosto ao ritmo das lágrimas. “Miúda!” nunca desejou tanto o silêncio na mão esquerda, que apertava um frágil laço de fita veneziana, os tremores de arrependimento não a abandonavam o copo servil chegava à boca de forma ausente de sentido o pensamento, esse traidor! Dali avistava o carro estacionado na avenida, a capota que não recolheu e a camisa de linho abandonada à pressa. Luísa tinha percebido. Ser dono dos seus silêncios permitiu-lhe não ficar preso nas suas palavras... mas das ações, não! Passaram anos, e naquela varanda, virada para o mar, onde o amor superou a alma, Luísa perc

Não

Sentir-se perder na imensidão do sonho. Quantos foram os sonhos trilhados nas subidas e descidas da vida. Quantas vezes se perde o norte e quantas vezes se procura, em vão, encontrar um destino. Estar presente. Ir. O que interessa é que fiquem bem. Quantas vezes a vida se torna amarga porque não se é capaz. As dúvidas existem. Falta a coragem. Nunca consegui arrancar de dentro deste corpo, pesado e cheio de amarguras, a voz para erguer o não necessário. Não sabia ser capaz de o proferir. Não sabia ter a capacidade interior de o dizer, e de aceitar que agora, sim, agora estava tudo bem. Ai a liberdade que se ganha! E aceitar que os outros percebam que o não é apenas um sim! Sim a nós! Quando nos dão por garantidos, que somos o troco de um qualquer café perdido no bolso, uma qualquer moeda de troca que podem usar ou um resto de tabaco no fundo da algibeira gasta. Não! Permitir que me embrenhe nos laços tortuosos dos seus desejos é não deixar brotar o melhor de mim

Obsessão

  Estou fechado na saudade que te tenho. Nos braços nus que me apertavam na noite fria. Nos seios leves, de mãe, caídos no meu peito, de auréola finamente desenhada com o bisturi do tempo. Estou cercado. Pelo cheiro do teu suor frutado. Estou dolente, na embriaguez do amor que me fugiu. Abriste a porta. Deixaste que entrasse no teu quarto. Roubei-te a certeza que tinhas em ti. Fiz de ti a mulher. Fiz de ti a amante. Fiz em ti o melhor de mim.             Pedro tentava escrever num papel as sensações que o abalroavam. Os pensamentos furtivos que tinha daquela mulher. Sonhava em beber do seu corpo o melhor dos néctares humanos. Receava não ter em si a força da coragem carnal. O jeito. A abordagem.   O querer e não ter. O ser capaz e recear.             Maldita! Perturbas-me o sono em cada volta de almofada. Não me chegam as mãos para quitar o prazer que instigas. És cruel! Mas o teu corpo! Pele macia, que dança no meu sonho... estou deitado num colchão nu

Espelho

“- Quem sou? É a pergunta a que tenho mais dificuldade em dar resposta. - Não pode ser assim tão difícil! – respondeu o espelho de espanto. - Todas as vezes que me perguntas quem sou, não te encontro as palavras da mesma forma. O meu refúgio é diferente em cada uma das vezes. Olhar-te assim, nos meus olhos, é ser capaz de te sentir em mim. - Como assim? Porque falas em refúgio? De que te escondes? - De mim. Escondo-me de me sentir e de me ver. Escondo-me da tirania dos meus medos. Escondo-me das afirmações que me faço verdadeiras. Escondo-me do pânico que me tenho. Escondo-me, acima de tudo, de me revelar. - Então, mostra-te, gaita! Diz quem és, o que procuras, o que sentes. Sai dessa cápsula esventrada de medo. Reage ao fungo errático que se aproveita de ti. Queima essa dor com um Cohiba!!!! - Não! Porque me gritas? Isto era a penas uma tentativa de me mostrar ao mundo. Porque me fazes isto? Porque me obrigas a olhar-me desta forma? Que raio de interlocutor és tu? Não pa

Fotografia

O álbum de pele antigo continuava no mesmo sítio. Pouco havia mudado na casa de família. Não a visitava há 30 anos. O dedo melancólico, passeou a trote em cada lombada da estante. Parou. O álbum de família! -        Abre! – gritou o deserto que habitava o seu coração. Não abriu. Fechou os olhos. Inspirou. A maresia que entrava pela janela entreaberta acariciou as cortinas de linho do norte que a mãe tanto gostava. Aquele cheiro a mar. Aquele reboliço na areia molhada. As toalhas em listas coloridas que se emaranhavam nas geleiras. Os chapéus de sol que protegiam a tia de pele clara que vinha da Covilhã. O corta vento encarnado onde se escondiam os miúdos mais travessos e reguilas do bairro da praia. O tio, irmão da mãe, que vinha sempre cheio de vontade de correr os 1500 metros na areia junto ao mar, refilava a quantidade de povo que estava por ali. -        Parece que fazem da praia um piquenique, só não é de burguesas! Antes fosse! -        Já não as há, caro António, j